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Na digna pessoa do Presidente da OAB, Seção do Pará, dr. Jarbas Vasconcelos, cumprimento os membros da Mesa, todas as pessoas e representantes de entidades da sociedade civil que lotam este auditório. Nesta mesma sala, quando aqui funcionava a antiga e querida Faculdade de Direito, fui aluno e assisti aulas, e fui professor, dando aulas. Vejo a galeria de fotos dos ex-presidentes da OAB. Tirando o primeiro, conheci todos os outros, fui amigo de muitos deles. Não posso esconder, Senhoras e Senhores, a emoção que de mim toma conta, neste momento, que é de reencontro, e o passado faz-se presente.
Vislumbro, na parede, o Crucifixo. Uma das tristezas de minha vida é não ter escrito um livro, que havia planejado, traçado, imaginado. Faltou-me engenho e arte. O tempo que me resta não é suficiente. O livro tinha título, “Jesus, o Jurisconsulto”. Eu pretendia mostrar que, além de tudo, o Nazareno foi um grande jurista, criativo, humano, justo, o maior dos juristas que a humanidade já teve. Vou destacar algumas passagens bíblicas, todas conhecidas, repetidas, mas, nem sempre, é detectado o profundo conteúdo jurídico que as anima. Peço que verifiquem.
Em Mateus (22:38), depois de apresentar o primeiro e grande mandamento – “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração” -, o Mestre enunciou o segundo mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E aqui reside o respeito, a solidariedade recíproca, o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando os discípulos repreendem as crianças, que desejavam se aproximar, Jesus lhes disse: “Deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o reino dos céus” (Mateus, 19:14). Esta passagem bíblica é mais importante do que o Estatuto da Criança e do Adolescente, todinho, com seus 267 artigos. Noutro episódio, os escribas e fariseus trouxeram á presença de Jesus uma mulher surpreendida em adultério, indagando se deviam apedrejá-la até morrer, e Ele lhes respondeu: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. E todos se retiraram – a começar pelos mais velhos! -, jogando fora as pedras que traziam nas mãos (João 8:7). Nesta ocasião, Jesus inventou o direito alternativo, ou, como prefiro, a interpretação alternativa do Direito, que muita gente pensa que é coisa moderna, criada neste nosso tempo.
Para terminar essas citações, vou mencionar uma, que tem tudo a ver com os objetivos deste nosso encontro. Perguntaram a Jesus se era lícito pagar tributo, e ele disse: “ Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. – Mateus, 22:21. Há mais de 2.000 anos, antecipando-se a todos e a tudo, o Nazareno pregou a separação entre a Igreja e o Estado.
No Brasil, essa separação não havia, até num passado recente. Por todo o Império tivemos uma religião oficial, a católica apostólica romana. Proclamada a República, em 1889, ainda antes da promulgação da Constituição de 1891, deixamos de ser um Estado confessional, pois o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, redigido por Ruy Barbosa, fixou o princípio da liberdade religiosa e estabeleceu a separação da Igreja e do Estado. Logo depois, a Constituição de 1891, mantendo esses princípios, determinou que o Brasil é um estado laico. E assim ficou e está, até hoje.
A Constituição em vigor, art. 19, inciso I, dispõe, desenganadamente, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesses público.
Entretanto, ser um Estado laico não quer dizer que tenha de ser um Estado ateu, um Estado que abomine as religiões, que persiga as crenças, que impeça a expressão religiosa, muito ao contrário. No preâmbulo da Constituição Federal há a invocação divina. Veja-se, por exemplo, o art. 5º, incisos VI, VII e VIII da Carta Magna, afirmando a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, assegurada, na forma da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, e estatuindo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. O art. 226, § 1º, da Constituição diz que o casamento é civil e gratuita a celebração, prevendo o § 2º do mesmo artigo que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. O Código Civil, complementado, nos arts. 1.515 e 1.516, regula o casamento religioso com efeitos civis.
Acho oportuno registrar que penso que o casamento religioso, para ter efeitos civis, observadas as prescrições legais, é o celebrado por qualquer autoridade de uma religião. Pode ser o padre, o pastor, o rabino, como pode ser o celebrante em cerimônia religiosa num centro espírita ou num terreiro de candomblé. Por que teria de se atribuir, diante do princípio da liberdade de crenças e da igualdade, valor menor, acanhado, diminuído, ao celebrante do culto afrobrasileiro? Será este menos digno ou merecedor de menor respeito do que qualquer outro?
Este nosso bem inspirado encontro, aqui, hoje, é motivado pelo fato de ter sido introduzida, na campanha eleitoral de Presidente da República, as questões do aborto e das parcerias homossexuais, envolvidas, entretanto, de uma concepção religiosa, como “coisas do diabo”, prenunciando-se uma verdadeira “guerra santa”, com os candidatos fazendo-se acompanhar, ultimamente, de líderes religiosos, como numa tentativa de “purificação”, portando terços e outros símbolos ou adereços religiosos, e, até, assinando compromissos de não dar andamento de projetos de lei a respeito desses temas, que, assim, são lançados à obscuridade, à invisibilidade, enterrados num sepulcro, como se não representassem questões gravíssimas, que precisam ser meditadas, enfrentadas, debatidas com isenção, seriedade e independência, e a céu aberto, francamente, à vista de todos, democraticamente.
Não se está dizendo, o que seria uma absurdez inominável, que as mais diversas questões ou problemas não podem ser vistos e analisados levando-se em consideração seu aspecto ético, moral, espiritual, religioso. Não e não! O que se está afirmando é que essas questões ou problemas não se podem transformar numa questão religiosa, exclusivamente, que o viés religioso seja o principal aspecto a ser considerado, que o ponto de vista da religião seja preponderante, fundamental, principal, absoluto.
De fundamentalismo religioso já estamos cheios, fartos e temerosos, mesmo considerando o que ocorre em terras longínquas. Imagine-se o mal gravíssimo que essa intolerância pode causar, se for introduzida e reinar em nosso meio.
Mesmo os que abominam o aborto têm, sim, de debatê-lo, de discutir o aborto, que é largamente praticado em nosso país, milhares e milhares de vezes, a cada ano, e com absoluta impunidade, A diferença é que os ricos ou os mais abonados têm acesso a competentes médicos e boas clínicas, tudo se faz com limpeza, segurança, e os pobres são torturados nas mãos de aborteiras, nas garras dos curiosos. É, sem dúvida, um assunto com aspectos profundos de moralidade, de religião, mas é, igualmente, uma questão de saúde pública. O aborto já é, de fato, descriminalizado, no Brasil, quando se trata de aborto feito por pessoas de classes privilegiadas, mas até essas não chega a longa manus da legislação penal.
Não se trata de ser “contra” ou “a favor” do aborto, que não há ser humano – inclusive ateu -, com um mínimo de consciência e de dignidade, que admitia a matança de seres humanos em formação, assim, por qualquer motivo, ou sem motivo algum. Mas, sem dúvida, a matéria tem de ser discutida sem o colorido emocional intensamente ideológico e o radicalismo que está imperando no momento. Este é o ponto e foi isto que pretendi dizer-lhes, nesta oportunidade.
Quanto à legalização das uniões homoafetivas, a situação é de autêntico obscurantismo. Fomos um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão dos negros, e um dos últimos a permitir a dissolução do casamento pelo divórcio. Parece que vamos ser o último país civilizado a permitir legalmente a união civil ou o próprio casamento das parcerias homoafetivas. Embora o problema esteja sendo enfrentado e resolvido por uma jurisprudência republicana e corajosa, o legislador, por preconceito, falso moralismo e hipocrisia, continua silente, omisso, acovardado, como se não enxergasse uma realidade que fere aos olhos, no meio social. Temos, sim, já e já, que legalizar a situação desses milhares de brasileiros, que representam uma minoria e, por isso mesmo, merecem atenção, respeito, e ter garantido seu direito à felicidade.
Em síntese: essas questões podem, inclusive, apresentar um cunho religioso, fazer parte das pautas das confissões e dos cultos, mas sua discussão, na sociedade civil, especialmente numa campanha para a Presidência da República, não pode ficar restringida, limitada, esmagada pela orientação religiosa, que importa, mas não é única ou absoluta.
A discussão pode até envolver e considerar o aspecto religioso do problema, mas a religião não pode determinar a forma e os limites da discussão, nem pretender, sozinha, apresentar a solução do problema impondo uma fórmula mágica, desconsiderando todos os outros aspectos históricos, sociológicos, antropológicos e científicos da questão, seus detalhes e suas nuances.
Obrigado por me terem escutado com tanta paciência e benevolência. É noite, já.