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PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos e a Mulher - Cristina Carvalho

DSC_02922010, estamos no centenário do Dia Internacional da Mulher, o que nos obriga a uma reflexão objetiva sobre os avanços pelos quais a condição feminina passou e o longo caminho a percorrer para que sejamos de fato e não apenas de direito iguais na condição humana em relação ao homem. Resgatando historicamente o motivo pelo qual o dia 8 de março foi proposto e aprovado em 1910 por Clara Zetkin como o “Dia Internacional da Mulher”, podemos lembrar que em 1857,  em Nova Iorque, 130 mulheres foram trancadas numa fábrica de tecidos que foi incendiada, porque as trabalhadoras desta fábrica fizeram uma manifestação contra as desumanas condições de trabalho, e lá morreram carbonizadas. Mas somente em 1975 a ONU oficializou a data, demonstrando a dificuldade para reconhecer a cidadania feminina.                                  

Conquistamos o direito ao voto, usar calças compridas, trabalhar fora, casar sem a obrigação de acrescentar o nome do marido, não casar, e outras situações inimagináveis para as gerações atuais, que desconhecem a total ausência de direitos em que viviam nossas bisavós e avós. Mulher solteira era fracassada e mal amada, viver com um homem sem “papel passado”  era “mulher de vida errada” e era proibida de freqüentar ambientes “familiares”. Se fosse mãe solteira então nem se fala, era expulsa da família e banida, e só não morria porque as mulheres de “vida fácil” eram as únicas que as acolhiam e logo encaminhavam as crianças rejeitadas para outras pessoas criarem como “pessoas de bem”. E mulheres que enfrentavam todos os preconceitos trabalhando e tendo vida própria se não eram mal amadas com certeza eram “sapatão”. Estas últimas então nem mereciam comentários, mas simplesmente inexistiam para a sociedade.

Era assim que funcionava a sociedade de outrora, e felizmente nossas gerações devem suas conquistas a pessoas que souberam através de suas vidas demonstrar que as diferenças são simplesmente isso: diferenças. Não podemos julgar as pessoas ou seu caráter simplesmente por sua condição social, opção religiosa, orientação sexual ou qualquer outra situação  por nossas próprias vidas.

Uma coisa nas lutas pelos direitos civis ficou bem clara: a prioridade para discutir  determinados assuntos com o objetivo de encontrar um caminho pacífico deve ser feito com os grupos que são diretamente afetados, o que não obsta a possibilidade enriquecedora de ouvir outros segmentos. Entretanto o importante é não esquecer que conhece o problema quem passa por ele, quem sofre diretamente suas conseqüências.

Lamentavelmente quando se trata da condição feminina, sempre nos parece que as mulheres são as últimas a serem ouvidas. E não se trata aqui de defender essa ou aquela teoria, mas simplesmente a nítida impressão de que os assuntos mais importantes da agenda feminina são polêmicos e por isso devem ser calados antes que se discuta.

O Plano Nacional de Direitos Humanos III abordou assuntos ligados aos direitos sexuais e reprodutivos, fruto certamente das discussões ocorridas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, o qual tive a oportunidade de participar como representante do Pará, escolhida na Conferência Estadual, como OAB/PA, junto com outros 4 representantes da sociedade civil organizada. As discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos foram ricas, apaixonadas mas objetivas no sentido de olhar um problema que ninguém fala, mas atravessa o Brasil de norte a sul, com estatísticas assustadoras: o aborto. Os movimentos sociais da condição feminina demonstraram conhecimento do assunto, porque são normalmente os locais onde uma mulher que passa por tal sofrimento, é encaminhada para receber os cuidados e carinho necessários para uma situação tão difícil. Uma coisa é pacifica sobre o assunto, seja contra ou a favor: o caminho natural de uma gravidez, o desejo inconsciente é a concepção, um filho, a vida. Portanto tudo o que contrarie esse caminho natural é doloroso, sofrido, e quando acrescentamos a esse final um histórico de abuso sexual, violência sexual intrafamiliar, abandono familiar e social, podemos compreender o número de pacientes que se socorrem da Santa Casa, referência em aborto legal (assim chamado por ser previsto no Código Penal). Ocorre que a Santa Casa possui uma equipe multidisciplinar especializada que coloca outras possibilidades antes da interrupção de gravidez, sendo esta a última opção colocada para a mulher. Interessante que os relatos da equipe colocam que dificilmente a mulher retorna para outra interrupção.

Há algum tempo se fala nos casos de anencefalia, sem entretanto definir juridicamente o direito do casal ou mulher sobre qual caminho tomar nesses casos, ao que o casal ou mulher que não se sintam em condições de levar adiante a gravidez necessitam entrar com Ação Judicial requerendo autorização para interromper a gravidez, e daí claro, cada magistrado possui um entendimento, e o mesmo assunto pode ensejar diferentes decisões judiciais. Ressalte-se que existe geralmente uma conexão entre a anencefalia e a  baixa condição sócio-econômica do casal e/ou mãe, geralmente advindo de problemas nutricionais e má alimentação.

O PNDH III teve a lucidez de trazer a tona tais assuntos, apesar de polêmicos, e precisamos ouvir os movimentos de mulheres, os profissionais de saúde que atuam na Assistência Materno Infantil do SUS, os Conselhos de Classe dos Profissionais de Saúde, as OABs, o MP, Magistrados e só então poderemos discutir de forma objetiva, sem paixão, sem deixar de considerar a importância de outros atores sociais. Não há dúvida que a desestruturação familiar, aliado à ineficiência de políticas públicas voltadas à saúde, à educação que possam orientar ao exercício responsável da sexualidade são os maiores responsáveis pelo número de abortos realizados no Brasil.

A preocupação reside na total ausência de discussão onde argumentos científicos e jurídicos possam encontrar algumas soluções imediatas que redundem na obrigatoriedade de políticas públicas voltadas à saúde e educação, visando uma diminuição de casos de interrupção de gravidez de forma ilegal, por pessoas despreparadas, que mutilam jovens, sonhos e às vezes levando à morte. A despeito da importância de reflexões religiosas, que felizmente já tem o rumo certo sobre o assunto, e não poderia ser diferente, porque acreditam em Deus e tem certeza da repercussão espiritual do aborto, temos cidadãos e cidadãs que estão fragilizados religiosamente ou simplesmente não acreditam em Deus. Precisamos discutir novamente o exercício da cidadania, suas implicações, o significado da democracia ou então estaremos retrocedendo ao período de nossas bisavós Neste caso,  o Direito precisa refletir sobre o estado laico, seu significado, seu objetivo, e assim evitar que segmentos que não participaram das discussões ocorridas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos,  e que sequer aprovaram resoluções já discutidas nas Conferências Estaduais e Regionais de DH(ressaltando-se que o Pará teve um grande número de propostas aprovadas) imponham alterações sem que os segmentos participantes afetados possam discuti-los ou aceitá-los.

Discutir aborto é discutir políticas públicas, família, valores religiosos, conhecimento científico, sexualidade, mas no momento de definir ações para evitar mortes e mulheres estéreis em decorrência de aborto inseguro e ilegal, e impor a continuidade de gravidez por anencefalia há que se observar o aspecto científico, social e jurídico, porque o religioso já se define à mulher ou casal que decide levar adiante a gravidez.

É significativo o fato de que 66 movimentos representativos das mulheres manifestaram repúdio em e-mail enviado ao Ministro Paulo Vannuchi quanto as alterações feitas no PNDH III no que tange ao tema, principalmente porque como o próprio nome demonstra é uma Plano, uma diretriz, onde cabe discussão e mesmo alterações, desde que com a participação dos movimentos que reivindicaram nas Conferências Temáticas e Preparatórias os temas incluídos no PNDH III.

O tema diz respeito a todos nós, porque nascemos de mulheres, temos irmãs, filhas, companheiras, esposas, enfim, a situação exige que possamos chegar ao denominador comum: salvar vidas, e para tal precisamos reunir todas as diferenças e pensamentos no intuito de impor aos gestores que cumpram seu dever de cuidar dos cidadãos. Ao refletirmos, que possamos perceber que essa dor silenciosa é uma cruz social e não apenas feminina, vamos levar essa discussão para salvar e não para julgar nossos semelhantes.

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Dra. Cristina Carvalho
P
residente da Comissão de Saúde da OAB-PA

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