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Ao prestar homenagem hoje (27) à memória de Lyda Monteiro, a secretária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que foi vítima de carta-bomba de autoria de agentes da ditadura militar, há exatos 30 anos, o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, afirmou que "a mulher, mãe, trabalhadora, continua entre nós como símbolo de resistência". Durante o ato público de reverência à dona Lyda e de condenação a todas as formas de ditadura e à tortura, Ophir sustentou que "resistir é um ato de coragem, resistir para não desistir de amar, de ser feliz, de sonhar; sonhar com um Brasil mais justo, um Brasil mais igual, mais fraterno, sem violência, sem impunidade, sem terror".
O presidente nacional da OAB reafirmou o compromisso da entidade com os princípios da liberdade e da democracia - pelos quais lutou no regime autoritário e continua lutando -, e cobrou em seu discurso a "total abertura dos arquivos da ditadura e que se rasgue o vergonhoso véu da impunidade". Ele criticou o fato de o crime do qual foi vítima Lyda Monteiro não ter sido punido até hoje. "Mas não terá sido em vão que tantos deram suas vidas pela causa da liberdade", destacou Ophir em seu pronunciamento no ato, ocorrido na mesmo local em que explodiu a bomba em 27 de agosto de 1980, na antiga sede do Conselho Federal da OAB, no Rio de Janeiro. "Só conhecendo os erros e contradições do passado, poderemos construir um futuro melhor", frisou.
A seguir, íntegra do pronunciamento do presidente nacional da OAB no ato público em homenagem à memória de Lyda Monteiro:
"Senhoras e Senhores,
Estamos aqui prestando homenagem à memória de Dona Lyda Monteiro, e inevitável se torna lembrar os que tombaram por resistir ao arbítrio que por vinte anos, a partir de 1964, manchou a história de nosso País.
Homenageia-se uma cidadã cuja arma era tão-somente seu laborioso trabalho junto a uma instituição comprometida com a democracia e a liberdade, o Direito e a Justiça, ansiosamente reivindicados pela sociedade.
Homenageia-se uma cidadã vítima do terror que se opunha a estes princípios. Vítima da covardia, afinal. Pois de que forma podemos classificar essa violência. Covardes. Um milhão de vezes covardes!
Este ato, se de um lado expressa nossa repulsa a qualquer regime de exceção, seja em nome do que for, de outro nos obriga a lembrar, a lembrar sempre o que não podemos permitir de novo.
Se houve algum sentido em toda aquela loucura patrocinada pelo Estado - estudada, debatida, exaustivamente interpretada, mas, ainda assim, e para sempre, "loucura de Estado" - que seja este o sentido: de estarmos reunidos neste local para dizermos em alto e bom som: nunca mais!
Porque a violência perpetrada contra a Ordem dos Advogados do Brasil, vitimando Dona Lyda Monteiro, não foi como querem alguns, produto dos excessos de setores do regime, nem das bestas-feras que saíam dos porões fora de controle de seus comandantes. Não. O terror que matou Dona Lyda era produto do andar de cima, das altas esferas do poder - que tramavam não perder este poder.
Não foram dos porões, mas de gabinetes refrigerados, que saíram a carta-bomba contra a OAB, em 1980, e os sabotadores do Riocentro, em 1981. Só que neste último caso a bomba explodiu antes da hora no colo de um sargento do Exército. Um capitão do DOI-CODI, que sobreviveu, virou professor do Colégio Militar de Brasília. Terror e impunidade de Estado.
O Tribunal de Nuremberg, instalado para julgar as atrocidades do regime nazista, foi a solução que o mundo encontrou logo após a Segunda Grande Guerra para impedir que razões políticas de Estado se sobreponham a todas as demais questões, sobretudo de natureza humana.
Um presidente general daquela época, antes de morrer, admitiu publicamente que a tortura de presos políticos fora um recurso adotado para livrar o Estado do perigo que o ameaçava. Podia ser indecente, mas os outros fariam o mesmo, se vencessem, disse ele. Razões de Estado, portanto.
Não tivemos, até hoje, ninguém acusado, processado e punido por essas indecências. A bomba que matou Dona Lyda, as torturas - estas, sim, praticadas nos porões, mas com ordens dos indecentes encastelados nos andares de cima -, nada disto culminou em um ato de justiça.
Os crimes que o mundo inteiro consagrou como "crimes contra a Humanidade", violações gravíssimas aos Direitos Humanos, entre nós resumiram-se a referências no calendário, como se do mapa da "Humanidade" não existisse um Brasil decente.
Neste dia, nesta hora, uma bomba explodiu na Ordem dos Advogados. Uma cidadã brasileira morreu. Em vão?
Convém lembrar, sim.
Porque é a impunidade a mãe da violência. A violência que estoura a todo instante nas ruas e no campo. Mesmo sendo o Brasil, signatário de convenções e tratados internacionais contra a tortura, e tenha incorporado em seu ordenamento jurídico lei tipificando esse crime, ele continua a ocorrer em larga escala, conforme tem sido demonstrado por instituições públicas e organizações não-governamentais de direitos humanos nacionais e internacionais.
Mesmo depois de vigência de lei tipificando o crime de tortura, não se conhece nenhum caso de condenação de torturadores julgada em última instância, embora tenham sido registrados centenas de casos além de numerosos outros presumíveis, mas, não registrados.
O perverso em tudo isto é reconhecer que prevalece a impunidade dos criminosos. Estatísticas citadas pela imprensa indicam que cerca de 15 mil policiais - representando 3% do efetivo das forças policiais em todo o Brasil - são acusados de homicídio ou graves lesões a cidadãos.
Segundo a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, citada em trabalho realizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, de 121 denúncias de tortura e espancamento recebidas durante um ano, 80 converteram-se em inquéritos, envolvendo cerca de 200 policiais.
Dessas denúncias, 67 referiam-se a torturas cometidas dentro de delegacias da Polícia Civil, responsáveis pela investigação. Os outros 54 casos tinham como acusados policias militares, que fazem o policiamento ostensivo e preventivo. Isso demonstra que ocorrem mais agressões por policiais quando esses têm dominados os agredidos do que no enfrentamento com eles.
Ecos da carta-bomba.
Num único ano, 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, foram vítimas da violência no Brasil uma população de 51 mil pessoas. Sete mil a menos do que o mesmo número de perdas dos Estados Unidos ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.
Não. Não terá sido em vão.
Dona Lyda, mulher, mãe, trabalhadora, continua entre nós como símbolo de resistência. Resistir é um ato de coragem. Resistir para não desistir: de amar, de ser feliz, de sonhar. Sonhar um Brasil mais justo, um Brasil mais igual, um Brasil mais fraterno, sem violência, sem impunidade, sem terror.
Neste dia e local, a Ordem dos Advogados do Brasil, ao tempo em que volta a proclamar seu ideário de luta e resistência a todas as formas de arbítrio, exige a total abertura dos arquivos da ditadura e que se rasgue o vergonhoso véu da impunidade.
Não terá sido em vão que tantos deram suas vidas pela causa da liberdade. Só conhecendo completamente os erros e contradições do passado podemos construir um futuro melhor. Pois a história, nos ensina o revolucionário poeta, é um profeta com o olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será.
Muito obrigado!".
Fonte: OAB - RJ