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Rio de Janeiro (RJ) - Com o maior público da história das conferências nacionais dos advogados, o painel “A Proteção Constitucional da Vulnerabilidade” apresentou a 700 advogados, nesta quarta-feira (23), os desafios e avanços na proteção e efetivação dos direitos de pessoas vulneráveis no país. E, para isso, além de trazer especialistas, contou com a presença da Biofarmacêutica Maria da Penha – mulher símbolo da luta contra a violência doméstica no Brasil.
Presente ao painel, o presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Côelho, disse que a presença de Maria da Penha representa o ápice da Conferência. “Maria da Penha, mulher extraordinária, deu nome a essa lei que é um divisor de águas neste país. E é graças à lei que leva o seu nome que hoje temos um marco que garante proteção não apenas às mulheres, mas a todos os grupos vulneráveis de nosso país”, salientou. Em sua fala, Marcus Vinicius lembrou ainda a atuação da OAB perante o STF, ao ingressar como amicus curiae na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19 – que tratou da constitucionalidade de artigos da Lei Maria da Penha.
O painel foi presidido por Cícero Borges Bordalo Júnior, acompanhado do relator Tênio do Prado e da secretária Justina Alzira Soares do Nascimento. A abertura ficou a cargo da desembargadora do TRT/RS Tânia Reckiegel, que falou sobre o programa “RS Lilás” – iniciativa pioneira do estado do Rio Grande do Sul dentro de políticas públicas voltadas para as mulheres. “Através de ações de empoderamento e de enfrentamento da violência, atuamos em diversas frentes, desde a proteção policial diferenciada, até a realização de cursos de capacitação para o público feminino”, exemplifica Tânia. Ela destaca ainda que a pobreza e a não inserção no mercado de trabalho são considerados fatores de vulnerabilidade para essas mulheres.
Na sequência, o representante do Conselho Federal da OAB no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), Joaquim Santana Neto, fez um apelo à proteção das pessoas com deficiências na palestra “As pessoas com deficiência e o desafio da efetividade de seus direitos”. Ele relata que, “24% dos brasileiros possuem algum tipo de deficiência, segundo censo do IBGE de 2009. E é dever de toda sociedade, e não apenas dos advogados e dos governos, lutar pela real inclusão dessas pessoas”. Joaquim destaca também as ações da OAB junto ao Conade com esse objetivo, tais como a realização de cursos que capacitam advogados e funcionários a lidarem com pessoas portadoras de necessidades especiais.
Já o professor Edson Damas, membro do Ministério Público, abordou as garantias constitucionais a partir do viés dos povos indígenas, fazendo um resgate histórico que se origina ainda no Brasil colônia, com o reconhecimento da posse da terra pelos índios que nela habitam. “É a Carta Régia de 1609 que reconhece pela primeira vez ao indígena a posse da sua terra e o direito de dela não ser retirado à força”, contou, explicando que esse princípio foi atualizado na Constituição. “Os direitos indígenas no Brasil sempre estiveram ligados à terra, mas o texto de 1988 traz uma inovação muito importante, que é o reconhecimento identitário e cultural dos 225 povos que habitam nosso território”, ressaltou.
Sobre as cotas raciais como mecanismo de inclusão social, palestrou o membro da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB Humberto Adami. Ele falou sobre como ações afirmativas reparam não apenas distorções sociais, como os repetidos e institucionalizados abusos cometidos contra os negros na história do Brasil. “Aqueles que são contra as ações afirmativas reproduzem uma mentalidade escravagista ainda entranhada no pensamento da nossa sociedade”, disse. Adami também destacou “que o racismo é uma realidade incontestável demonstrada pelas estatísticas”, e que ele permeia as relações pessoais, profissionais, políticas e econômicas.
Maria da Penha arranca aplausos e emociona advogados
O ponto alto do painel foi também o momento mais esperado: a palestra da Biofarmacêutica Maria da Penha – cuja luta de quase 20 anos contra a impunidade do seu agressor levou o Brasil, pressionado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), a criar a Lei 11.340/06, batizada com seu nome. “A lei não veio para punir o homem; veio para punir o homem agressor, o que é muito diferente. E esse homem que não respeita as mulheres como uma pessoa humana, que a agride – sejam elas suas esposas, mães ou filhas – comete crimes. E deve ser punidos por isso”, sentenciou.
Em sua fala, Maria da Penha lamentou que o “machismo ainda entranhado na sociedade” prejudique a correta aplicação da lei, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF em 2012. “O Estado deve dar o exemplo. Se um policial é complacente com um homem agressor ou a mulher que busca ajuda na delegacia é demovida de prestar queixa, o exemplo é negativo. O homem volta a agredir e a mulher não consegue sair do ciclo de violência ao qual está submetida. Ela já tentou de tudo. Ela quer uma solução. E pode chegar o dia em que essa mulher acabará assassinada”. Ainda de acordo com Maria da Penha, pessoas que tenham conhecimento de que alguma mulher próxima passa por essa situação devem ajudá-la. “É muito difícil para a mulher sair desse ciclo sozinha, denunciar alguém que muitas vezes ela ama e promete que tudo voltará a ‘ser como antes’”.
Contando sobre sua experiência pessoal, Maria da Penha revelou que os momentos mais dolorosos da sua vida foram as duas vezes em que seu ex-marido e agressor, mesmo condenado, saiu em liberdade do tribunal. “Foi então que pensei em escrever um livro e contar a minha história. Se a Justiça não tinha cumprido o papel dela, a sociedade iria cumprir ao saber o que se passou comigo”. Publicada em 1994, a obra “Sobrevivi. Posso contar” chamou a atenção de um parlamentar, que a ajudou a entrar com uma representação internacional contra o Brasil em 1997. E foi somente em 2006 que a lei que leva o seu nome foi criada, para que casos como o dela não mais se repetissem e ficassem tanto tempo impunes: o martírio de Maria da Penha teve início em 1983, mas somente em 2002 (5 anos após a representação ter sido feita na OEA) o agressor foi preso.
Cícero Bordalo Júnior – que também é presidente da Comissão Nacional de Promoção de Igualdade do Conselho Federal da OAB –, afirmou que “graças ao sofrimento, à luta e à perseverança de Maria da Penha, no Brasil foi criada uma das três leis mais avançadas do mundo”.
(Foto: Eugenio Novaes - CFOAB)