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MÁRIO ANTÔNIO LOBATO DE PAIVA é Advogado militante e Conselheiro Efetivo da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Pará, onde exerce a presidência da Comissão de Estudos em Direito da Informática.
Dedicado ao estudo das aplicações da informática na área do direito desde 1998, MÁRIO PAIVA consagrou-se como um dos maiores especialistas do País em Direito da Informática, além de figurar como membro de instituições nacionais e internacionais criadas visando discutir os desafios trazidos pela “sociedade da informação” ao desenvolvimento social e econômico do mundo globalizado.
Cônscio dos prejuízos que advirão à sociedade brasileira, em especial à comunidade jurídica, caso o Congresso Nacional aprove um novo Código de Processo Civil com grave deficiência em relação à realidade vivenciada pelos profissionais do direito na atualidade, MÁRIO PAIVA, que também exerceu o magistério na Universidade Federal do Pará, concedeu entrevista exclusiva à equipe editorial da Consulex, em que chama a atenção do legislador para a necessidade de se disciplinar, de forma minuciosa, as questões relacionadas ao processo eletrônico.
Revista Jurídica CONSULEX – Como o Senhor avalia a proposta de um novo Código de Processo Civil, ora em trâmite na Câmara dos Deputados?
Advogado MÁRIO PAIVA – A edição de um novo Código de Processo Civil será de grande valia para toda a sociedade. A meu ver, porém, faltou à Comissão de Juristas, quando da elaboração do anteprojeto, dispor expressamente, e em minúcias, sobre o processo eletrônico, dando ao tema o destaque que a realidade processual exige.
CONSULEX – Poder-se-ia dizer que há falhas na proposta legislativa de um novo Código de Processo Civil, no tocante ao processo eletrônico?
MÁRIO PAIVA – Sim. Isto porque a realidade hodierna exige a elaboração de um verdadeiro “código de processo eletrônico”, visando disciplinar os procedimentos há muito utilizados pelos tribunais brasileiros.
Nesse sentido, deveria a Comissão de Juristas, responsável pela elaboração do anteprojeto, ter previsto, em capítulo próprio, as formas de transmissão, conservação e tratamento dos dados processuais disponibilizados pelos tribunais brasileiros nas páginas da Internet.
CONSULEX – Não se afigura precipitado falar em um “código de processo eletrônico”?
MÁRIO PAIVA – De maneira nenhuma. O processo eletrônico já é realidade, em especial nos Tribunais Superiores. Não temos dúvida de que, em breve, todos os feitos em tramitação naquelas Cortes serão integralmente digitalizados, bem como os procedimentos inerentes à atividade da advocacia.
Ora, se praticamente todos os tribunais brasileiros já anunciam a “morte” do processo tradicional, como aceitar que a idealização do “novo” Código de Processo Civil tenha se dado em razão de processos físicos em suporte papel?
CONSULEX – Que dificuldade merece ser ressaltada no que se refere ao processo eletrônico?
MÁRIO PAIVA – Como advogado, posso afirmar que uma das maiores decepções é constatar que o recurso interposto foi tido como deserto, devido ao preenchimento incorreto da guia de custas ou do depósito recursal, e isto, muitas vezes, por uma diferença de dois ou três centavos no valor a ser recolhido ou pela digitação errada de uma das letras do nome das partes ou do número do processo.
Daí porque defendo a necessidade de se prever, em capítulo próprio do novo Código de Processo Civil, que as guias de custas ou de depósito recursal serão preenchidas automaticamente pelos tribunais, conforme o recurso visado pela parte sucumbente, evitando-se, assim, que erros de cálculo ou de digitação venham a se constituir óbice à análise do mérito.
CONSULEX – Além dessa previsão, o que mais o Senhor considera importante destacar?
MÁRIO PAIVA – As denominadas “Reglas de Heredia”, que visam estabelecer regras mínimas para difusão da informação judicial na Internet, resultaram do consenso entre integrantes dos Poderes Judiciários, organizações da sociedade civil e acadêmicos da Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, México, República Dominicana e Uruguai, presentes em evento realizado na cidade de Heredia, na Costa Rica, em 2003.
Trata-se, na verdade, de recomendações aprovadas durante o seminário “Internet e Sistema Judicial”, do qual participei ativamente. De sua leitura atenta, pode-se observar o quanto é importante a proteção dos dados judiciais a fim de se assegurar a privacidade e a intimidade dos litigantes em relação à sociedade como um todo.
CONSULEX – Poderia explicitar a questão da proteção dos dados?
MÁRIO PAIVA – Algumas informações processuais disponibilizadas nos sites dos tribunais podem acarretar sérios problemas aos litigantes, pela exposição de sua intimidade. É o caso, por exemplo, do portador do vírus HIV, que, facilmente identificável por qualquer usuário da Internet, poderá sofrer grave discriminação em seu meio social.
CONSULEX – Isto não feriria o princípio da publicidade aos atos judiciais?
MÁRIO PAIVA – Pelo contrário, a proteção das informações das partes no processo impõe o aprofundamento da análise legislativa no que toca às questões advindas do universo virtual.
Veja-se que a sentença, cujo teor é disponibilizado no site do tribunal, pode ser acessada por qualquer usuário da Internet e por tempo indeterminado, enquanto a que é divulgada no Diário da Justiça e, portanto, em meio impresso, é lida por um número reduzido de pessoas, ou seja, apenas por aquelas interessadas no seu conteúdo e, em geral, na data da circulação do “jornal”, que é determinada.
Há, portanto, que se harmonizar o direito de acesso e a publicidade das decisões judiciais com o devido resguardo da privacidade e da intimidade dos litigantes, mediante a inserção de dispositivo específico no novo Código de Processo Civil.
CONSULEX – Neste caso, que consequências adviriam do silêncio da lei?
MÁRIO PAIVA – Sem dúvida, teria lugar a responsabilidade objetiva do Estado por eventuais prejuízos suportados pelos jurisdicionados, em decorrência da divulgação de dados processuais que digam respeito à sua privacidade.
CONSULEX – Ainda no que se refere ao processo eletrônico, caberia prever a realização de audiências por videoconferência?
MÁRIO PAIVA – Claro que sim. Aliás, o uso da videoconferência no processo civil permitiria às partes litigantes e eventuais testemunhas economizar o dinheiro gasto com transportes, alimentação e até hospedagem, além de facilitar sobremaneira o trabalho do juiz e dos serventuários da Justiça.
CONSULEX – No seu entender, afigura-se adequada a previsão do uso do correio eletrônico no que toca às cartas precatórias e rogatórias?
MÁRIO PAIVA – Sim, é claro, pois não importa se de um juiz da comarca de Belém para outro de São Paulo ou de país diverso, a remessa efetivar-se-ia igualmente em questão de segundos. Hoje, a demora que se verifica na comunicação entre juízes de um mesmo grau hierárquico, com sede fora dos limites territoriais (carta precatória) ou entre autoridades judiciárias de diferentes países, para cumprimento de determinada providência processual (carta rogatória), acaba por postergar durante meses, e até anos, a solução da lide.
CONSULEX – O Senhor vislumbra uma boa aceitação do processo eletrônico pela comunidade jurídica?
MÁRIO PAIVA – Acredito que todos os profissionais do direito têm noção de que a evolução do papel para o byte é benéfica a toda a sociedade, porém, muitos há que ainda não estão convencidos de que esse processo de transformação não comporta retrocessos, por se tratar de uma imposição da modernidade.
Na verdade, o advogado que insistir que o seu trabalho pode perfeitamente ser executado da maneira tradicional e que a informatização do processo não irá mudar seu cotidiano, estará fadado à exclusão do mercado. É que a inoperância tecnológica do profissional afeta diretamente a qualidade do trabalho por ele desenvolvido e, por consequência, o serviço prestado ao cliente, que, ademais, não compactua com a demora.
Um caso extremamente simples que não se resolve mais da maneira tradicional refere-se ao andamento processual, que, disponibilizado na rede mundial de computadores, permite tanto ao advogado como ao seu cliente obter informações exatas sobre a tramitação do feito em qualquer dos Tribunais Superiores com sede em Brasília, por exemplo, utilizando-se tão somente do teclado do computador.
CONSULEX – “Conscientização” quanto à importância do processo eletrônico na atualidade seria a palavra-chave dirigida ao legislador?
MÁRIO PAIVA – Isso mesmo. Veja que a Justiça Trabalhista, por exemplo, dispõe de certificação digital, o que permite aos advogados praticarem atos processuais válidos no meio virtual, sem a necessidade de apresentação posterior dos originais. Por essa razão, não entendo o raciocínio daqueles colegas que preferem protocolar petições em papel a enviá-las pelo meio eletrônico, uma vez que tal procedimento dispensa a realização de despesas com impressão, deslocamento etc., inerentes à confecção e ao envio da peça física para o tribunal. De igual modo, parece-me incompreensível a resistência do legislador em “encarnar” o espírito digital em sua atividade elaborativa da nova lei.
CONSULEX – Que consequências à sociedade podem advir da aprovação de um novo Código de Processo Civil sem as necessárias adaptações ao processo eletrônico?
MÁRIO PAIVA – O mesmo que recentemente ocorreu com o Código de Defesa do Consumidor [Lei nº 8.078, de 11.09.90]. Em virtude do crescente número de compras realizadas no meio virtual, o Ministério da Justiça congregou a interpretação e experiência dos Procons, Ministério Público, Defensorias Públicas, entidades civis, entre outros, e editou diretrizes voltadas à proteção do consumidor. Não vejo, porém, necessidade de que isto venha a suceder com um código elaborado em plena era da informática, mas que, infelizmente, não traz em seu bojo essa realidade.
CONSULEX – Este será, portanto, um dos maiores desafios do ano que se inicia...
MÁRIO PAIVA – Com certeza, já que estamos diante de uma verdadeira revolução, na qual princípios elementares do direito, como os da privacidade e da territorialidade, terão que ser relativizados no confronto com questões inerentes ao processo eletrônico. E, o que é mais desconcertante, muitos dos ensinamentos trazidos por grandes jurisconsultos não terão qualquer serventia para dirimir eventuais controvérsias, à luz do Direito, nesse novo campo de aplicação da informática.
CONSULEX – É possível estender-se um pouco mais sobre o tema?
MÁRIO PAIVA – O processo eletrônico trouxe situações que restringem, ampliam ou modificam por completo a aplicação de determinada norma processual. Um dos exemplos mais interessantes está relacionado aos prazos processuais.
Historicamente, cada prazo encerra-se no momento exato em que se verifica o término do atendimento ao público pelo protocolo do tribunal. No processo digital, isto não ocorre, estendendo-se o prazo final até a meia-noite, o que gera benefício aos jurisdicionados e advogados que com esta modificação, introduzida pela lei n 11.419/06, tem o seu direito de protocolo de petições preservado integralmente..
CONSULEX – Em outras palavras, urge a disciplina, pelo novo Código de Processo Civil, dessa e de outras questões relacionadas ao bom andamento do processo virtual....
MÁRIO PAIVA – Exatamente. Uma espécie de “espírito” ou “veia” eletrônica que abarque as situações mais corriqueiras, provenientes da utilização do processo virtual; caso contrário, será preciso a edição de normas processuais suplementares, com graves prejuízos aos jurisdicionados em face da demora em sua implementação.
CONSULEX – Outros países têm se movimentado neste sentido?
MÁRIO PAIVA – Claro que sim. Há, inclusive, tratados sobre o assunto, firmados no âmbito da União Europeia. Para se ter uma ideia do impacto da informática no Direito, vale mencionar que a Constituição da Espanha, em seu art. 18, dispõe que “A lei limitará o uso da informática para garantir a honra a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e do pleno exercício de seus direitos”.
O que se observa, portanto, é a relevância da questão, que já começa a ser inserida na própria Constituição de alguns países.
CONSULEX – Que recomendações o Senhor daria à comunidade jurídica quanto ao acolhimento do processo digital?
MÁRIO PAIVA – Em trabalho elaborado em 2002, em que propugno o surgimento de um novo ramo da Ciência Jurídica – Direito da Informática –, conclamei a comunidade jurídica a receber de braços abertos as mudanças decorrentes da informatização da cultura jurídica, pois delas adviriam muitos benefícios à sociedade.
Nada obstante, os frutos do avanço tecnológico somente serão colhidos se as mudanças vierem acompanhadas de um estatuto processual que preveja, amplamente, as questões inerentes ao processo virtual.
Fonte: Revista Consulex nº336. Pág 6