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A Nova Lei de Migração: As Mudanças e a Humanização da Condição do Estrangeiro
Rodrigo S. F. Gomes[1]
RESUMO: Este texto objetiva fazer uma breve abordagem sobre as principais alterações promovidas pela Lei de Migração (Lei nº 13.445/17) e seu Regulamento (Decreto nº 9.199/17), no que diz respeito aos vistos, às medidas de retirada compulsória e aos asilados, refugiados e apátridas. Tal abordagem visa, também, a demonstrar que a Lei de Migração buscou humanizar a condição jurídica do estrangeiro, seguindo lado a lado aos direitos humanos e, ao mesmo tempo, na contramão de outros países que têm adotado políticas e legislações restritivas aos direitos do estrangeiro. Os objetos deste texto são a Lei de Migração e seu Regulamento, e, subsidiariamente, a doutrina e jurisprudência.
PALAVRAS-CHAVES: Lei de Migração. Estrangeiro. Refugiado. Direitos Humanos.
1 INTRODUÇÃO
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a consequente consolidação do Estado Democrático de Direito, o ordenamento jurídico nacional passou a ser fundado no respeito aos direitos humanos e direitos fundamentais.
De fato, a Constituição de 1988 estabeleceu um novo momento na ordem jurídica interna, e, “respirando os ares” de uma sociedade internacional mais engajada na proteção à pessoa humana, reproduziu em seu texto vários direitos e garantias constantes de tratados internacionais de direitos humanos.
Nesse contexto, a Carta Magna fez resplandecer o princípio da isonomia no caput do art. 5º, o qual reza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
A despeito disso, o então vigente Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) parecia condizer muito mais com a conjuntura do regime militar do que com a Constituição Cidadã e os direitos humanos.
O Estatuto do Estrangeiro estava moldado a atender, sobretudo, o “interesse nacional” – é o que transparece das quatorze menções do referido termo na Lei –, o que se torna preocupante em tempos de regime ditatorial, em que o “interesse nacional” é usado como “justificativa” para desrespeitar alguns direitos inerentes à pessoa humana.
Nunca é demais recordar que a noção de soberania ilimitada dos Estados sobre o seu território e os indivíduos – tal como aquela dos tempos da Paz de Vestfália – foi relativizada, para que fossem acrescentados naquele conceito dois novos segmentos da ciência jurídica, quais sejam, os Direitos Humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente[2].
Desta forma, urgia a necessidade de uma legislação que versasse sobre o estrangeiro e sua condição jurídica atualizada às aspirações da Constituição de 1988 e dos direitos humanos.
2 A LEI DE MIGRAÇÃO
Antes mesmo de sua entrada em vigor, a sociedade internacional já atentava para a Lei de Migração (LM). De fato, foi na 72ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, ocorrida entre 12 e 25 de setembro de 2017, que o Excelentíssimo Presidente da República, Sr. Michel Temer, anunciou para os delegados dos Estados que havia acabado de modernizar a lei de migração do Brasil[3].
Analisando-se a LM, verifica-se que no art. 3º estão enumerados como seus princípios, dentre outros, o respeito à universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos (inc. I), o repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e outras formas de discriminação (inc. II), a acolhida humanitária (inc. VI) e a não criminalização da migração (inc. III).
Cumpre destacar que o alienígena deixou de ser tratado simplesmente como “estrangeiro” para ser chamado de “imigrante”, “visitante” ou “residente fronteiriço”, a depender de sua situação.
3 DOS TIPOS DE VISTOS
Aos interessados em ingressar no território nacional, um dos primeiros requisitos a ser notado é o visto, seus tipos e sua concessão. Semelhantemente à lei anterior, o visto é individual e, per se, gera apenas expectativa de ingresso da pessoa no País.
De acordo com o art. 12 e seguintes, da LM, os vistos podem ser de visita ou temporário, os quais serão concedidos pelas embaixadas, consulados e escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, desde que habilitados pelo Ministro das Relações Exteriores. Além desses, os vistos também podem ser diplomático, oficial e de cortesia, aos quais a concessão fica a critério do Ministério das Relações Exteriores.
Dentre os vistos comumente concedidos, a distinção se dá no sentido de que o de visita (art. 13) é o mais adequado àquele que vem passar curto período no Brasil, sem possuir intenção de estabelecer residência e exercer atividade remunerada, enquanto que o visto temporário (art. 14) pode ser concedido ao indivíduo que deseja estabelecer residência por tempo determinado no Brasil, geralmente para fins de estudo, pesquisa, trabalho, tratamento de saúde etc.
No revogado Estatuto, existiam os vistos de trânsito e de turista, os quais foram incorporados no de visita, ressaltando-se que não este será exigido “em caso de escala ou conexão no território nacional, desde que o visitante não deixe a área de trânsito internacional” (art. 13, §3º, da LM).
O imigrante, visitante ou residente fronteiriço que pretenda residir no Brasil e que se enquadre em uma das hipóteses do art. 142 do Decreto nº 9.199/17, deverá requerer a autorização de residência ao Ministério da Justiça[4], salientando-se que, em alguns casos, ela poderá ser concedida por prazo indeterminado, e.g., indivíduos na situação de refúgio, asilo ou apatridia.
4 DOS ASILADOS E REFUGIADOS
Compulsando a LM e seu Regulamento, é cristalina a atenção devotada aos vulneráveis, notoriamente os refugiados, asilados e apátridas, o que demonstra a atualidade da legislação quanto às obrigações assumidas pela República Federativa do Brasil em sede de Direitos Humanos.
Quanto aos refugiados, sua situação jurídica é objeto da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e seu Protocolo, de 1967, em âmbito global[5], e pela Lei nº 9.474/97, que buscou implementar a referida Convenção em âmbito doméstico.
No que concerne à atual situação dos refugiados no País, o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), divulgou um relatório aduzindo que o número de solicitantes de refúgio aumentou significativamente nos anos de 2014 e 2015, interregno em que foram apresentadas 57.055 solicitações. Por outro lado, o status legal de refugiado foi reconhecido a 9.552 indivíduos no ano de 2016[6].
Ainda de acordo com o relatório do CONARE, no que se refere aos países de origem dos solicitantes de refúgio, no ano de 2016, a Venezuela liderou o ranking, seguida de Cuba, Angola, Haiti, Síria, dentre outros.
Sobre o asilo, havia certa divergência se este se tratava de direito subjetivo do solicitante ou de ato discricionário do Estado, havendo quem advogasse, a exemplo de Valério Mazzuoli, se tratar de direito subjetivo do solicitante nos Estados em que suas Constituições preveem sua concessão, como o Brasileiro, em decorrência do art. 4º, X, da CF/88[7]. Solucionando a controvérsia, o art. 27, da LM, determinou que o mesmo se constitui em ato discricionário do Estado.
Insta ressaltar, outrossim, que o beneficiário do refúgio ou do asilo territorial não será extraditado (art. 82, IX, LM).
5 DAS MEDIDAS DE RETIRADA COMPULSÓRIA
As medidas de retirada compulsória sofreram substanciais alterações e estão disciplinadas nos arts. 46 a 62, da Lei de Migração, e arts. 178 a 212, do Decreto nº 9.199/17.
A primeira delas, a repatriação, é medida administrativa que visa a devolver ao país de procedência ou de nacionalidade o indivíduo que adentra no território nacional com pelo menos um dos impedimentos de ingresso previstos no art. 45, da LM.
Quando o alienígena está em situação de migração irregular, a medida a ser aplicada será a deportação. A nova legislação exige a realização de notificação do indivíduo para regularizar sua situação migratória e permanecer no território nacional, além de lhe oportunizar o direito de recorrer, acaso seja decretada sua deportação[8].
Uma das mudanças mais relevantes proporcionadas pela Lei nº 13.445/17 e seu Regulamento concerne à expulsão do alienígena. No regime anterior, tal expulsão poderia ser aplicada ao estrangeiro que atentasse “contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”[9].
A Lei de Migração restringiu as hipóteses de expulsão para duas, sendo elas: a) a prática de crime definido no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (crime de genocídio, crime de guerra, crime contra a humanidade e crime de agressão); e b) a prática de crime doloso punido com pena privativa de liberdade, observadas a gravidade e as possibilidades de ressocialização no País.
A expulsão, que é decorrente de processo administrativo e cuja decisão é proferida pelo Ministro da Justiça, agora tem caráter temporário, i. e., o migrante expulso ficará proibido de retornar ao território nacional por prazo determinado.
Anteriormente, uma vez decretada a expulsão, ao estrangeiro não seria concedido o visto, o que, na prática, fazia com que o mesmo não pudesse mais reingressar no território nacional, salvo se a medida fosse revogada.
É inegável que a expulsão tem natureza de pena, haja vista ser retribuição ao migrante ou visitante que foi condenado com sentença transitada em julgado pela prática de algum dos atos do §1º, do art. 54, da LM, o que ensejará a restrição de seu direito de permanecer em território nacional.
Destarte, tendo a expulsão natureza de pena, a sua duração perpétua violava a proibição vigente em nosso País sobre as penas de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b”, CF/88. Esta desconformidade, no entanto, está superada, em virtude do caput do art. 54, da LM, instituir que o impedimento de reingresso tem prazo determinado.
Ainda sobre a expulsão, impende destacar que o expulsando (tampouco o deportando e o repatriando) não está mais sujeito à prisão administrativa decretada pelo Ministro da Justiça, justamente em razão dessa espécie de prisão não ter sido reconhecida pela Constituição Federal[10]. Apesar disso, subsiste a possibilidade de prisão cautelar do extraditando a pedido do Estado interessado, a qual será avaliada pelo STF com a oitiva do Ministério Público Federal (art. 275 e ss, D. nº 9.199/17)
O expulsando pode interpor pedido de reconsideração para combater o decreto de expulsão, o qual poderá ter seus efeitos suspendidos se alegada alguma das causas de inexpulsabilidade do art. 55, II, da LM[11].
Com o escopo de melhor entender o vanguardismo da LM em relação a outras legislações ao redor do mundo, vale lembrar as lições de Jacob Dolinger, quando cita um julgamento da Suprema Corte Americana sobre a expulsão de estrangeiros, o qual, apesar do ano (1952), expressa uma realidade ainda vívida na política de muitos países:
(…) Permanecer no país “não é um direito mas uma questão de permissão e tolerância, e o governo tem o poder de fazer cessar sua hospitalidade, pois a faculdade de expulsar o estrangeiro é inerente à soberania do país. Enquanto permanece no país, a Constituição o protege, mas se permanece ou não, é decisão do governo”[12].
Por fim, há que se ressaltar que a Lei de Migração assegurou amplamente o princípio do non-refoulement[13], que encontra previsão em várias convenções. Isso é vislumbrado quando o art. 62 dispõe que não se procederá à nenhuma das medidas de retirada compulsória (repatriação, deportação, expulsão) “quando subsistirem razões para acreditar que a medida poderá colocar em risco a vida ou a integridade pessoal” do indivíduo[14].
6 CONCLUSÃO
O advento da Lei de Migração e seu Regulamento não podem ser compreendidos somente direcionando os olhos para os assuntos e interesses domésticos da República Federativa do Brasil. Nesse diapasão, não podem ser olvidadas as crises humanitárias que atualmente sofrem vários países na Ásia, América do Sul, Oriente Médio e Europa, haja vista que refletem profundamente em nosso País.
Assim, parece-nos que a LM deu uma resposta positiva e condizente às obrigações internacionais de direitos humanos que o Brasil se comprometeu em cumprir – o que é elogiável no atual contexto, em que países europeus e americanos têm adotado políticas cada vez mais rigorosas e, por vezes, discriminatórias, para o ingresso de estrangeiros em seus territórios.
[1] Advogado inscrito na OAB/PA sob o n. 26799 e pesquisador em Direito Espacial e Direito Internacional.
[2] Nesse sentido: “A mudança de paradigma em questão é justamente a atenuação ou relativização da soberania estatal, decorrente da aceitação de obrigações internacionais relacionadas à proteção de determinados grupos de pessoas em seu território, bem como o reconhecimento de sua responsabilidade internacional em relação a este compromisso”. V. AMORIM, João Alberto Alves. A ONU e o Meio Ambiente: Direitos Humanos, Mudanças Climáticas e Segurança Internacional no Século XXI. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 20.
[3] Dizia, naquela oportunidade, o Presidente da República: “Temos hoje, meus senhores, uma das leis de refugiados mais modernas do mundo. Acabamos de modernizar também nossa lei de migração, pautados pelo princípio da acolhida humanitária. Temos concedido vistos humanitários a cidadãos haitianos e sírios. E temos recebido milhares de migrantes e refugiados da Venezuela”. Disponível em: “http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/discursos/discursos-do-presidente-da-republica/discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-na-abertura-do-debate-geral-da-72o-sessao-da-assembleia-geral-da-onu”. Acesso em 14 mar 2018.
[4] O Regulamento resguarda que os pedidos de autorização de residência serão encaminhados ao Ministério do Trabalho quando a motivação do pedido se enquadrar em uma das situações do §1º do art. 127.
[5] O Brasil é parte na referida Convenção, tendo sido promulgada pelo Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961, e o seu Protocolo foi promulgado pelo Decreto nº 70.946, de 7 de agosto de 1972.
[6] Os dados do relatório abrangem os anos de 2010 a 2016. Disponível em: “http://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/01/refugio-em-numeros-2010-2016.pdf”. Acesso em 16 mar 2018.
[7] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 822.
[8] V. a respeito, os arts. 188 e 189, do Decreto nº 9.199/17, e 50, da LM.
[9] O art. 65 do revogado Estatuto previa que o estrangeiro poderia ser expulso se: a) praticasse fraude a fim de obter sua entrada ou permanência no Brasil; b) houvesse entrado no País com infração à lei, dele não se retirasse no prazo que lhe fosse determinado para fazê-lo; c) entregasse à vadiagem ou à mendicância; ou d) desrespeitasse proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro.
[10] Vale destacar as lições de Fernando Capez: “Esta modalidade de prisão foi abolida pela atual ordem constitucional. Com efeito, o art. 319 do Código de Processo Penal [em seu texto original, antes da redação realizada pela Lei nº 12.403/2011] não foi recepcionado pelo art. 5º, LXI e LXVII, da Constituição Federal. Em sentido contrário, o STF já entendeu que ainda cabe a prisão administrativa do estrangeiro, durante o procedimento administrativo da extradição, disciplinado pela Lei n. 6.815/80, desde que decretada por autoridade judiciária. Assim, desde que imposta por juiz, tem-se admitido, a nosso ver sem razão, a prisão administrativa do extraditando”. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 309.
[11] Já há julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de admitir a causa de inexpulsabilidade superveniente ao decreto de expulsão, e.g., migrante que tem sua expulsão decretada em janeiro de 2017, mas o ato não é cumprido até março de 2018, quando descobre-se que o expulsando tornou-se pai de filho brasileiro em dezembro de 2017, o que impossibilita sua expulsão. (Processo HC 148558 SP - SÃO PAULO 0011237-49.2017.1.00.0000, Publicação DJe-287 13/12/2017, Julgamento 7 de Dezembro de 2017, Relator Min. Marco Aurélio).
[12] DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito Internacional Privado: Parte Geral e Processo Internacional. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 212.
[13] Esse princípio impõe que os Estados não devem expulsar a pessoa para o país onde sua vida ou liberdade possam estar em risco. O princípio foi adotado na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 33, I), na Convenção Contra Tortura (artigo 3) e no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 22, 8) – sendo o Brasil parte em todos eles. Para uma análise mais aprofundada sobre a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados e o princípio da não devolução (non-refoulement), ver o artigo do autor “Proteção aos Refugiados da Coreia do Norte: Um Estudo Acerca da Relação China - Coreia e do Princípio do ‘Non-Refoulement’”. Disponível em: “https://driigomes.jusbrasil.com.br/artigos/543496410/protecao-aos-refugiados-da-coreia-do-norte”. Acesso em 19 mar 2018.
[14] Nesse mesmo sentido, o Decreto nº 9.199/17: “Art. 180. Não se procederá à repatriação, à deportação ou à expulsão de nenhum indivíduo quando subsistirem razões para acreditar que a medida poderá colocar em risco sua vida, sua integridade pessoal ou sua liberdade seja ameaçada por motivo de etnia, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”.